Pensamento-cinema 5


Pensamento-cinema 5 – 2015.2
O que é o cinema-documentário? Ou uma teoria da verdade
Início: 27 de outubro 2015, as 19h. Local: CineSESC.

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Conteúdo teórico das lições:
1ª lição 4/11/2015: DOC/o real e a verdade
2ª lição 10/11/2015: DOC/o trabalho
3ª lição 16/11/2015: DOC/a experimentação
4ª lição 23/11/2015: DOC/a arma
5ª lição 02/12/2015: DOC/filmar desde dentro
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Apresentação geral do curso

O título do curso é duplo. Diríamos: compõe-se de um título e um subtítulo. Digo: da passagem de uma motivação a uma outra. O duplo título envolve uma inflexão na investigação acerca da essência do cinema documentário.

É claro, o curso se inscreve na continuação, como quinto ciclo do Programa Pensamento-cinema. A relação entre pensamento e imagem, questionada e problematizada agora a partir de um cinema do “segundo gênero”: o documentário.

Disse no início que o título deste curso indica uma passagem. A passagem de uma motivação a uma outra.

A primeira motivação é a busca pela essência do documentário. A questão “O que é o documentário?” pergunta pela relação entre a pretensão ou o pacto de realidade próprios ao gênero e os elementos de ficção ou imaginação presentes no cinema. Todo cinema é imaginação, produção e exposição de um fluxo de imagens. Mas, então, o que faz de um documentário um documentário? O que é isso que não pode ser suprimido de um documentário, sem que ele, ao mesmo tempo, deixe de ser o que é, um caso particular desse “segundo gênero do cinema”?

A resposta imediata está na ponta da língua, quase como um ato reflexo: o documentário mostra necessariamente e exclusivamente fatos reais, é composto de um material bruto, imagens e sons captados diretamente do real. O documentário espelha o real.

Mas logo em seguida se reconhece que este material real precisa ser elaborado sob algum princípio de realidade. Princípio de realidade que aparece na seleção dos planos filmados, e reaparece, ou eventualmente se transforma, na montagem, na justaposição, na coesão da imagens e dos sons, e na busca, pelo documentarista, de alguma coerência. Coerência a que o documentarista submete, de maneira transcendente, o material bruto, ou que ele descobre, encontra, de maneira imanente, no próprio corpo de imagens e sons reais.

O material bruto imagético documental (imagens e sons) precisa ser captado do real, interpretado, ordenado e articulado sob algum princípio de realidade. Este seria o elemento plástico, o elemento estético, incontornável do documentário, e que, queiramos ou não, o aproxima perigosamente da ficção.

Por que perigosamente? Porque toda parte evidenciada de ficção – a ficção, sublinhe-se, é o primeiro gênero de cinema –, toda parte de ficção reconhecida em um documentário o coloca sob suspeita. Esta suspeita é um afeto, uma disposição do espectador. Ao perceber com clareza os elementos de ficção presentes num filme, o espectador duvida, desconfia da sua realidade, até o ponto em que passa a considerar aquela peça imagética, não mais como espelho de fatos reais, mas como efeito de uma invenção, uma manipulação artística do real, uma ficção.

A proposição apodítica e a priori “isto é um documentário” provoca o espectador a uma espécie de pacto, o pacto do real, pelo qual o espectador deposita sua confiança na peça imagética em troca do compromisso com a realidade assumido pelo seu realizador. A evidenciação dos efeitos estéticos, com certeza, compromete o pacto de realidade. Disso decorre o perigo, rompido o pacto, de o documentário perder, junto ao espectador, seu status de documentário, para ser reconhecido como ficção, passando do segundo para o primeiro gênero de cinema.

Com a formação da ciência cinematográfica do espectador (para não dizer da sua consciência)  – isto é, mediante o questionamento pelo espectador do que filmar significa –, fica-lhe evidente a presença dos elementos estéticos em qualquer documentário, até mesmo nas suas espécies supostamente mais imediatas como a reportagem de atualidade, desde o início, desde a captação em imagem e som dos fatos reais. O enquadramento, para ficarmos com um exemplo, já se expõe, em si mesmo, como uma abstração do real, efeito de uma escolha estética, por parte do documentarista, de uma escolha que recorta da complexidade do real, já sob uma influência interpretativa, já sob uma vontade de poder e de saber, aquilo que interessa e precisa ser mostrado. Assim, toda captação de fatos reais seria captura do real sob um princípio de realidade que lhe é transcendente.

Com isso, fica claro ao espectador instruído no olhar que na gênese do documentário se encontra um elemento estético ou ficcional incontornável. Somos, então, conduzidos a concluir que não há, finalmente, no cinema, um segundo gênero? Que, no cinema, tudo é ficção? Que a essência do documentário é uma quimera, uma ilusão, um engano?

É neste ponto que incide a inflexão da motivação da investigação que alimenta este curso. Talvez já não se trate exatamente de estabelecer a essência do documentário, mas de apreender, na pretensão e no ato de documentar, a teoria da verdade que, para o documentarista, seja o elemento constitutivo, a realidade, ao mesmo tempo, do filme e do real. Ou talvez possamos apreender a essência do documentário pela teoria da verdade que ele pressupõe, ou filma.

Uma teoria da verdade talvez seja a possibilidade de estabelecermos a comunidade entre a realidade e o cinema. Uma teoria da verdade talvez seja o elo estabelecido, ou que se estabelece, no documentário, entre os fatos reais e os elementos estéticos incontornáveis do cinema. Uma teoria da verdade que é, simultaneamente, uma teoria sobre a maneira de se produzir verdadeiramente a verdade. Uma teoria da verdade que é ao mesmo tempo uma teoria da técnica do documentário.

O cinema documentário filma uma teoria da verdade, e a mostra esteticamente.



Leon Farhi Neto, 15/9/2015.