3º Encontro

Pensamento-cinema 4 – 2015.1
Referência: Os números depois das barras indicam uma página do livro de André BAZIN: O que é o cinema?. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2014 [1985].

3. Cinema e ontologia (neorrealismo e fenomenologia)

A base material do cinema, a relação real (e, até então, incontornável) entre o objeto filmado e o processo químico na película que permite revelá-lo, para Bazin, constitui o fundamento ontológico do destino do cinema: o realismo.

A realização máxima deste destino se encontra, segundo o crítico francês, num determinado gênero da arte cinematográfica: o neorrealismo italiano. Aí, o ser alcança a sua presença real na aparência.

A técnica fotográfica não é uma imagem ou representação do ser e sim seu vestígio: “uma verdadeira captura da impressão luminosa”. Mais do que semelhanças, “a fotografia traz consigo uma espécie de identidade” com o seu objeto. Para além da fotografia, o cinema captura em si as marcas da duração do objeto.

3.1. Artes plásticas: salvar o ser pela aparência

Artes plásticas – um fato fundamental da sua gênese: a prática do embalsamento. Na origem da pintura e da escultura: a luta contra a morte. Como? Fixando, artificialmente, o ser pela aparência. “A morte não é senão a vitória do tempo.” Salvar o ser, retirando-o da “correnteza da duração”/27. Isso corresponderia a uma necessidade incoercível: a necessidade de “exorcizar o tempo”./28

Aspectos mágicos da arte: a identificação ontológica entre modelo e retrato [uma aparência que é o próprio ser]. Na arte primitiva: o urso de argila crivado de flechas como garantia do sucesso da caçada./28

A perda da crença nesse vínculo mágico (o mesmo ser no modelo e na sua representação) não provocou a descrença de que se pode “vencer o tempo pela perenidade da forma”./28

Se a história das artes plásticas envolve essencialmente motivações psicológicas (a necessidade de exorcizar o tempo e salvar o ser, fixando-o pela aparência), então “ela é essencialmente a história da semelhança”, isto é, história do realismo./28

[Bom, é o cinema que finalmente assume para si esse ergon, essa obra, essa tarefa. E isso liberta as outras artes plásticas.]

Malraux pode então afirmar que: “o cinema não é senão a instância mais evoluída do realismo plástico”, cujo ápice está na pintura barroca./28 – a partir do século XV, com o Renascimento, a imitação do mundo exterior toma a frente da preocupação com a expressão de uma realidade espiritual por meio do simbolismo./28

Decisivo em relação a isso: a invenção da perspectiva. Uma técnica que permite a ilusão de um espaço tridimensional, em que os objetos se situam mais ou menos como na percepção direta./29

Bazin fala de duas aspirações divergentes da pintura: a aspiração estética de expressar realidades espirituais por meio de símbolos que transcendem o modelo; a aspiração psicológica (cuja origem estaria na “mentalidade mágica”) de “substituir o mundo exterior pelo seu duplo”./29

A técnica da perspectiva resolvia bem as questões espaciais. Na arte barroca, na impossibilidade de reproduzir o movimento, foi possível sugeri-lo, por meio de uma “expressão dramática no instante” capaz de dar a sugestão da vida./29

3.2. A invenção da fotografia e a redenção das artes plásticas

A capacidade essencial (ligada à própria essência) da fotografia de se assemelhar ao seu modelo “liberou as artes plásticas de sua obsessão pela semelhança”./30

Como a “máscara mortuária” (modelagem direta sobre o rosto do morto), a fotografia também apresenta “certo automatismo na reprodução”, afinal, ela é uma gravação, por meio da luz, das impressões deixadas [rastos] pelo objeto./30

Através das lentes (não é por nada que se diz objetivas para lentes) uma “imagem do mundo exterior se forma automaticamente, sem a intervenção criadora humana, segundo um rigoroso determinismo”. A relação da coisa com a película prescinde da intermediação humana, é direta. Abstração feita do humano-fotógrafo, a fotografia “age sobre nós como um fenômeno natural”./31

A técnica fotográfica (não é uma imagem do ser e sim seu vestígio): “uma verdadeira captura da impressão luminosa”. Mais do que semelhanças, “a fotografia traz consigo uma espécie de identidade”./173

A realidade da coisa fotografada é transferida para o suporte fotográfico: ele carrega em si um traço da coisa. Diante da foto estamos diante do modelo./32 [com a foto em mãos temos em mãos algo próprio ao modelo] [como se tivéssemos em mãos uma relíquia] [a fotografia guarda em si um traço ontológico, um traço do ser, um retalho da sua verdadeira luz]. A coisa deixa na película fotográfica como sua “impressão digital”./33

A objetividade da lente, a objetividade da objetiva fotográfica, despoja os objetos de toda a carga imagética [estética]./33

Imagem (quando há um acréscimo ao objeto representado pela sua representação na tela). Implica: a plástica, a montagem./96 Plástica: cenário, maquiagem, de certo modo até a interpretação dos atores, iluminação, enquadramento, [trilha sonora])./96 Montagem: organização das imagens no tempo [na produção de sentido]./96

A objetividade da lente revela diretamente o real, o real despojado de tudo aquilo (emoções, preconceitos, costume) que lhe adiciona a subjetividade do intermediário (pintor, escultor). Isto é: a “impassibilidade da objetiva”/33

A objetividade da fotografia lhe confere um poder de credibilidade. Trata-se de um “poder irracional”! Somos levados “a crer na existência do objeto representado”./32 [o poder da razão destruiria essa credibilidade: separando definidamente aparência e ser, ou seja, imagem e modelo: a aparência/imagem é sempre uma abstração do ser/modelo/realidade]

A fotografia embalsama o tempo; o tempo embalsamado se subtrai à sua própria corrupção/32

3.3. A quasi-invenção do cinema

O cinema confere à objetividade fotográfica a objetividade temporal. Têm-se, capturadas no cinema, a coisa e a duração da coisa./33 [Como uma máscara mortuária que se molda ao ser e ao tempo de ser na sua duração e os captura, não o tempo como receptáculo vazio].

Para além da fotografia, o cinema captura em si as marcas da duração do objeto. [a velocidade, a continuidade, o movimento] /173

No entanto, “o cinema ainda não foi inventado”./39

3.4. FILME_DEBATE:
Paisà, de Roberto Rosselini, 1946.

O neorrealismo é uma posição ontológica antes de ser estética!”/336

3.4.1. Recursos realistas dos neorrealistas

3.4.1.1. Atores

Despojamento de todo expressionismo/110

impassibilidade da objetiva corresponde a impassibilidade dos atores][são como são, sem nada expressar][uso de pessoas comuns reais, que não são atores profissionais]

A interpretação expressionista: o ator expressa por meio da mímica codificada um elemento espiritual (sentimento, ideia, desejo). A expressão é tão somente um signo que se refere a uma realidade interior. Como signo pertence a um código lexical conhecido do espectador./335 Isso será posto em questão pelo neorrealismo.

O neorrealismo pede para o ator ser antes de expressar./255

Daí: o uso frequente de atores não profissionais (autênticos meninos de rua, trabalhadores, prostitutas etc.) : ênfase na [autenticidade x interpretação]/288 ...exige dos atores um “mínimo de mentira dramática”/289

[a expressão revela de forma marcante a vida espiritual – aspiração estética]
[o despojamento da expressão vai a favor da aspiração psicológica: dispor de um duplo do real]. De tal maneira que este duplo corresponda à “criação de um universo ideal à imagem do real, dotado de destino temporal autônomo”/28

Porém, mais importante do que o uso de atores não profissionais, aliás, muitas vezes, misturados a atores profissionais, o mais característico da “escola italiana atual” é “a negação do princípio da estrela”. O ator não carrega em si nenhum efeito imagético [valor, ideia, pré-história] que anteceda ao personagem./289

3.4.1.2. Efeitos de montagem

Ausência dos efeitos de montagem, planos-sequência, a favor da continuidade da realidade. A ideia [o ideal sonhado de Cezare Zavattini, roteirista de Vittorio De Sica] de filmar 90 min da vida de um homem (“filmar sem montagem”/337), na qual nada acontece [captação da realidade pura, sem especial interesse, encontro]./111

Como em O. Welles, a tendência de acabar com os efeitos estéticos da montagem: uso da profundidade de campo e das panorâmicas./111

Como em O. Welles, o neorrealismo tende a dar ao filme o sentido da ambiguidade do real./111 – [uma equivocidade ontológica] “ambiguidade ontológica da realidade”/338.

O relato procura respeitar “a verdadeira duração do acontecimento”. Sem cortes, ao máximo./335 A elipse, quando ocorre, corresponde às lacunas do real. Já que o conhecimento que temos do real é limitado!

O cinema foi dito “a arte da elipse”. No entanto, ao valorizar a duração, a arte do neorrealismo faz outra coisa: coloca os instantes concretos da vida em igualdade ontológica./351+/359

3.4.1.3. Locação

Uso de tomadas externas, em cenários reais, fora do estúdio. Sem iluminação artificial./299
O problema do som. A dublagem.

3.4.1.4. Situação histórica atual

[Elemento realista: gosto pela atualidade e simultaneidade] “Rossellini filmou Paisà em um momento em que o roteiro era atual”./285 [encontra-se, potencialmente, o mesmo acontecimento dentro e fora da sala de cinema] – o cinema italiano “se caracteriza principalmente por sua adesão à atualidade”/285.

Valor documentário! “Reportagens reconstituídas”. O roteiro está enraizado na realidade social./285

O cinema italiano demonstra um amor pela realidade em si mesma./286

[Duas atitudes/disposições discursivas possíveis diante do real]: o amor e a recusa [a afirmação e a negação do real, em sua maravilha e em seu horror].

3.4.1.5. Humanismo

O filme italiano não falseia a realidade. Ele nunca toma a realidade como um meio [para impor um sentido extrarreal ou hiperreal]. Certamente a realidade é condenável. Mas “antes de ser condenável, o mundo é...”! [A realidade ontológica prevalece sobre o juízo moral/político] – “os personagens existem com uma verdade perturbadora. Nenhum deles é reduzido ao estado de coisa ou símbolo”. O “equívoco de sua humanidade” jamais é ultrapassado numa marca, numa máscara simplista./286

Para Bazin, esse humanismo realista [no seu equívoco] é o “principal mérito” dos filmes italianos./287

Esse humanismo se mostra também por uma ênfase do indivíduo em relação à massa. Raramente vista como uma força social positiva, a massa aparece sempre em sua oposição ao indivíduo./287

O cinema atual italiano é mais sociológico do político. Quer dizer: a realidade social (a miséria, o mercado negro, a prostituição, o desemprego) prevalece sobre as ideologias políticas (feitas de ideias separadas e anteriores a essa realidade)/287

3.4.2. A contradição estética vencida

O maior mérito [mérito que é explicitado agora de outro modo] do cinema italiano: “ter lembrado que não há realismo em arte que não seja, em princípio, profundamente estético”/290. A invenção e a complexidade das formas não incidem sobre o conteúdo da obra [efetivamente realista], mas sobre os meios cinematográficos, segundo uma apuradíssima “ciência estética” [de apreender, na película, o sensível]/291 e uma grande consciência dos meios./304 O cinema italiano atual dispõe de um grande domínio da linguagem do cinema e conquista uma evolução estilística./291

A arte envolve escolha e interpretação do real. No cinema italiano, uma esmerada escolha do “detalhe verdadeiro e significativo”./295

O neorrealismo venceu sua contradição estética!/330

“Trata-se, sem dúvida, [...] de fazer do cinema a assíntota da realidade. Mas, para que, em última instância, a própria vida se transforme em espetáculo, para que, nesse puro espelho, ela seja finalmente vista como poesia. Tal como ela é em si mesma, o cinema a transforma”./352

Fellini e o neorrealismo realizado na sua superação: “numa reorganização poética do mundo”/359

3.4.3. Neorrealismo como gênero

O neorrealismo italiano é o gênero que melhor responde à “vocação realista”/111 do cinema. Na sua aproximação com o documentário de reportagem sobre a guerra, no seu “senso de realidade social”./328

A ideia de gênero.

“Seria obviamente ilusório pretender reduzir toda a produção italiana recente a alguns traços comuns bem característicos e indiferentemente aplicáveis a todos os diretores”/295

A crítica italiana dizia que o neorrealismo como gênero não existia./327 Em geral, fora Rossellini e Zavattini, os diretores italianos não aceitavam o rótulo. Um grau de narcisismo, de orgulho ferido de uma singularidade perdida. O termo unificador passa por cima das grandes diferenças de gênio./327+/336

Mas também há recusa do termo neorrealismo devido ao “preconceito desfavorável contra o realismo”. O realismo contradiria, segundo esse preconceito, a realização artística. “A arte se propõe a ir além da realidade, não a de reproduzi-la”. Terrível, então, para o artista, ser taxado de realista. /328

Hibridismo: o neorrealismo não existe no estado puro, mas misturado com outros gêneros. Mas valem os fatores genéricos dominantes!/337 A atitude neorrealista é um ideal do qual se pode aproximar mais ou menos. Resta sempre um pouco de realismo tradicional (dramático ou psicológico)/370

[O que faz do neorrealismo um gênero?] Como no romance, é principalmente a “técnica da narrativa” que revela o estilo estético./296

Filme: sempre “uma sucessão de fragmentos de realidade na imagem”, num plano retangular, e é a ordem e a duração da visão que determinam o sentido. =Fragmentos de realidade colocados em sucessão temporal.=/296

Se a técnica narrativa [a ordenação e a conexão dadas aos fatos fílmicos, que em si mesmos não as portam] é o que define o estilo, o roteiro aparece então como o elemento definidor./296

No cinema italiano, devido às possibilidades abertas pela precariedade material de sua situação histórica, há uma grande parte de improvisação./296

O enorme investimento material, normal no cinema, em geral, impede e elimina qualquer espaço de improviso./296

Rossellini tem em mãos inicialmente apenas esboços de roteiros, que se modificam à medida que as inspirações e as disposições se modificam./297

O grau de improvisação pode ser maior ou menor, mas basta uma improvisação no detalhe, para dar à narrativa um andamento surpreendente e imprevisível./297

[O que se ganha com a improvisação? É a contingência, a imprevisibilidade. O desaparecimento da transcendência do sentido e de qualquer teleologia, um fim que guia o acontecer desde fora do plano dos acontecimentos.][A imanência].

Nota bene: é verdade, os cineastas italianos “nunca podem resistir por completo” ao melodrama e às suas necessidades dramáticas previsíveis. Mas isso não impede que a gênese da narrativa seja de uma necessidade “mais biológica do que dramática”/297

Note-se também: em geral, são vários os indivíduos que assinam o roteiro. Até que ponto levar a sério essa “paternidade coletiva”? Não muito, esse crédito múltiplo muitas vezes visa a uma neutralização política, à medida que envolve polos politicamente opostos. Mas ela frisa um certo grau de independência do diretor do filme em relação as ideias dos roteiristas./297

O estilo do filme italiano se aparenta a um jornalismo meio literário [conta a realidade social com certos elementos poéticos, com alguma graça], cujo aspecto artístico porém é menor./299

Entre as cenas (fragmentos de realidade), a conexão não é dramática, – em certos trechos são apenas justapostos. Em Rossellini, conserva-se alguma inteligibilidade da sucessão dos fatos, mas as cenas não se engatam umas às outras como elos de uma cadeia./301 A constituição desses elos cabe ao espectador. É a constituição de uma espécie de moral da história, moral à qual o espectador não pode escapar porque ela provém do real./301

“O fato é, por si só, múltiplo e equívoco”. A imagem-fato é um dado anterior ao sentido. Seu sentido sobressai somente por um trabalho da mente do espectador na justaposição com outros fatos./303

O cinema italiano encontra, vinte anos depois, “os meios propriamente cinematográficos da mais importante revolução literária moderna”, a sua revolução realista: a integração do behaviorismo (externalidade radical), da técnica de reportagem e a ética da violência./306

Típico do roteiro neorrealista: reportagem social, “os episódios se sucedem sem razão, ou, ao menos, sem necessidade dramática”. [Contingência] os acontecimentos se encadeiam acidentalmente, como a própria realidade. Mas essa é uma realidade poética, uma trama mais profunda, mais frouxa, como no CONTO./330

Criar a ilusão do acaso: conseguir “fazer com que a necessidade dramática tenha o caráter da contingência”. Os filmes neorrealistas, em geral, têm o “rigor da tragédia e, no entanto, tudo acontece por acaso”./338

Neorrealismo se opõe ao drama (como encadeamento lógico dos acontecimentos)./350

3.4.4. Neorrealismo e fenomenologia

[Aproximações fenomenológicas do neorrealismo:
A fusão da aparência e do ser.
A imanência.
A contingência.
A denegação dos preconceitos teóricos, e dos sentidos a priori.
O espectador como elemento constituinte do sentido.]

O realismo submete seus empréstimos à realidade a exigências, sentidos, fins e ideias que os transcendem (que não estão disponíveis nas próprias imagens-fato)./334

“O neorrealismo só conhece a imanência. É unicamente do aspecto, da pura aparência dos seres e do mundo que ele pretende deduzir, a posteriori, os ensinamentos neles contidos. Ele é uma fenomenologia.”/335

O neorrealismo é um “realismo fenomenológico”. A aparência precede o sentido. O sentido surge do acontecimento. Não o contrário./357

Por exemplo, não é o caráter do personagem que define seu comportamento. O personagem se define por sua aparência!/357 Por sua mera descrição fenomenológica./360

A renúncia à expressão (a ideia da aparência como signo de uma realidade profunda, sub-imagética) obriga “a realidade a mostrar seu sentido unicamente a partir de suas aparências”./375